Levantou, sem saber com que pernas... Correu, sem saber com que ares. Não demorou para perceber que se perdia em círculos, aprisionado pelo sabor quente e voluptuoso de palavras obscenas que não eram ditas, apenas experimentadas. Mergulhou... Não havia ar, por qualquer razão (talvez inerente aos acontecimentos), mas não era desagradável. Sentiu seu estado de alerta escorrendo por entre os dedos enquanto dardos de prazer em forma de sussurros o anestesiavam do medo. Esqueceu, pelo instante, sua preocupação de saber onde se encontrava. Mas, tão logo havia rendido-se novamente à deliciosa incompreensão dos fatos, logo viu-se longe daquele estranho poço dos desejos.
Desceu uma íngreme encosta e foi literalmente esparramado ao encontrar-se com o pulsante coração daquela terra. Ali, boquiaberto, tentou ao menos avistar seu caminho, mas estava tão entorpecido por eventos passados e presentes que suas observações pouco lhe ajudaram a situar-se. Sem delongas, pôs-se a subir as colinas. De lá, do topo do mundo, haveria de reconhecer aquele mundo, tão familiar e estranho ao mesmo tempo... Aconchegante e selvagem... Imaginável mas misterioso. Metade do caminho e cansou-se, o fôlego faltando-lhe. Como que empurrado por um outro sopro, distante mas que soou tão próximo, levitou até o topo dos belos montes. Lá, antes de tentar situar-se, buscou algo que beber, tinha a boca extremamente seca. Não achou nada que pudesse tomar para si, não naquele momento.
Gastou seu tempo, no topo do mundo, e relutou em descer. Emergências e urgências à parte, gostava de gastar seu tempo, achava prudente. De fato, debaixo daquele céu de mil cores e formas, abraçado pelo manto azul escuro da noite, curtir o momento haveria de ser infinitamente mais interessante do que retomar sua busca pela real realidade. Mas, assim como nenhuma alegria ou tristeza é para sempre, foi forçado para fora de seu mirante por forças místicas que não tentou opor, embora de maneira muito honrosa: não por fraqueza de consciência, mas por força de espírito.
Caiu ao início de uma longa estepe que seguia noite adentro. Ainda estava perdido e sem certezas do caminho, mas agora estava mais tranquilo. Se sentia à vontade naquele lugar e imaginava que, seguindo a trilha até o fim, teria sua melhor chance de achar o caminho de volta ao conhecido.
Adentrou a noite.
A longa caminhada lhe dava tempo para pensar. Imagens esparsas agora pipocavam em sua mente, pistas, talvez, dos acontecimentos que o levaram àquele lugar. Mas, ao contrário da confusão dos primeiros instantes de consciência nesse novo mundo, agora ansiava conhecer todas as cores daquele magnífico céu noturno. Sentia-se feliz por estar trilhando aquele rumo, imaginava que o significado daquele momento realmente estava atrelado a si. Suas constatações confusas e dúvidas certeiras foram, entretanto, abruptamente encerradas pelo achado à sua frente.
Um poço, novamente, mas bem diferente daquele de outrora. Aqui não se poderia mergulhar, nem saciar qualquer sede ou desejo. Sentiu como se já estivesse estado ali antes, um sentimento nostálgico, familiar. Sem poder interagir intensamente, no entanto, com àquela formação, circundou a cratera e seguiu caminho. Percebeu a mudança no terreno, sabia que as estepes logo se findariam. Caminhou apenas um pouco mais, apenas para encontrar uma das mais belas visões que já contemplara.
À sua frente, um longo vale, de montes sólidos e bem definidos. Abaixo, uma densa floresta descia pelo terreno que se tornava mais e mais acidentado. Seus olhos brilharam... lá, onde cresciam as árvores, haveria de achar o que beber. Sua garganta seca corroborou seu desejo de se aventurar nestas novas terras. Com brilho ígneo nos olhos, seguiu em frente, seguro de que seu destino estava ali e o chamava de maneira ansiosa.
Lutou contra a vegetação, abrindo caminho por léguas e mais léguas. A falta de ar de antes havia agora sido tomada por ardente arfar, e já não caminhava... corria, abrindo suas próprias trilhas. O vento em sua face acusava: havia água por perto. Correu... Voou... Livre... Desempedido... Misturou-se com a noite... Assim, mesclado com o véu noturno, debaixo das luzes cintilantes, atravessou muitos milhares de milhas...
Milhões de milhas...
E de maneira tão surpreendente qual a que alçou seu vôo livre, chegou ao seu destino...
À sua frente uma enorme gruta, uma fina lâmina d'água deixando a escuridão de seu interior e rumando ao infinito. Uma vontade incontestável o levou gruta adentro, antes que pudesse ter dúvidas, questionamentos ou considerações sobre o que deveria fazer. O que se passou lá dentro não pôde ser visto, a escuridão daquele lugar não podia ser maculada por nenhum tipo de luz. Mas quando corredeiras caudalosas desprenderam-se do interior da caverna, aquele que havia se engajado em tão prazerosa e inesperada aventura deixou-se levar em júbilo. Sua sede? Não havia necessidade de dizer que havia sido saciada. Suas dúvidas? Eram de importância tão ínfima que lhe escaparam da mente.
Deixou-se levar. A lâmina d'água virou riacho... riacho, corredeira... corredeira, cascata... cascata, um mar onde as águas plácidas vertiam sem pressa ou pressão para dentro da noite. Boiou na calmaria, já não pensava em mais nada... poderia bem ser a calmaria que boiava em sua alma...
Achou algo para ancorar-se e ali ficou... Não que não quisesse achar mais seu destino, mas já o havia encontrado... Fechou os olhos, não conseguia fazer mais nada além de sorrir. Apenas sabia que, naquela noite, seus sonhos seriam os melhores dos últimos tempos...
...ou...
... haviam sido...
(obrigado ao pintor não encontrado) |