Enquanto o homem acreditou em um sentido para a vida além do
simples existir, usando de uma metafísica para reexplicar o que já era óbvio,
suas constantes contradições morais o levavam para um rito circular e vicioso
de culpa.
Nietzsche, um dos principais assassinos do arcaico Raskólnikov interior dos
homens modernos, já argumentava que o mundo em si não possui uma estrutura
lógica objetiva, exceto aquela que lhe damos, o que implica no ritual
metafísico de explicações desnecessárias. O Raskólnikov de Dostoiévski,
subjulgado pela pressão das moralidades, propôs quebrar com as barreiras que o
limitavam, ultrapassou o que, no fundo, era inerente a ele e, no fim, caiu em
culpa e se resgatou em
religião. O processo de culpa que ele sofre deriva da ilusão
da moralidade que ele tinha, pautada na metafísica da época, que se esforçou
para abandonar em nome do ideal de ser um homem excepcional, mas falhou, pois
depois do ato cometido, ele ainda era fiel à busca do abstrato. O Raskólnikov
de Dostoiévski falhou, entretanto, o posterior pensamento moderno com base no
niilismo apresentado por Nietzsche, dá suporte para que o novo Roskólnikov interior
de cada homem possa obter sucesso nas mais variadas empreitadas adquiridas,
algo que tem o seu potencial multiplicado dentro do capitalismo atual. Ou seja,
a quebra individual dos paradigmas morais de uma sociedade retira os selos da
limitação do que deve ou não ser feito em prol da manutenção do simples
existir.
Em
Match Point, de Woody Allen, vemos que aquele que
simplesmente existiu, sem dar ênfase ou se apegar a objetivos traçados é, de
fato, um Raskólnikov moderno, melhorado. O seu niilismo moral, que a principio
choca, também é confortante sob a ótica de que isso é apenas parte do vazio
existencial. Chris Wilton é o homem que se deixa levar pela vida por perceber
que a existência não é pautada em um sentido absoluto, mas no acaso. Um homem
vazio existencialmente, moldado pela falsa ascensão do capitalismo, que, em
dado momento, reduz a zero sua moral para continuar a existir. Assim como o
Raskólnikov original, ele sente culpa por seus atos, talvez nos revelando que o
desapego moral é impraticável na sua totalidade, mas ele também entende que o
processo autodestrutivo da culpa é mera formalidade metafísica, optando por
aquilo que é factível, ele decide continuar simplesmente existindo em sua
realidade. Vê-lo ter êxito em sua jornada amoral é ter em mãos o retrato de uma
sociedade não meritocrática, o que nos revela o quão fraca é a metafísica que
nos ilude cotidianamente.
Não existe uma meritocracia, nunca existiu. Não existe de
fato um castigo para o crime na versão de Woody Allen, assim como não há na
sociedade, não há uma regra fundamental que promova relações justas. A ilusão
meritocrática positiva ou negativa é fruto de um processo limitador do
capitalismo. Não existe uma certeza em qualquer dedicação, nem necessidade.
Plantar nunca implicou em colher e vice versa. E, por fim, não existe um
sentimento de impunidade, mas ausência de sentido nas ações, como o próprio
niilismo propõe. Reduzir a participação do superego pautado em moralidades
inexistentes e carentes de sentido é a meta do homem moderno, de seus Raskólnikovs
internos, modernos e vazios, mesmo que isso represente uma geração em massa de
sociopatas.
O acaso como forma determinadora de ações também representa
a prática natural do niilismo estrutural. Coisas acontecem sem motivo ou
explicação, apenas acontecem, acaso. E é justamente o acaso que regula o
sucesso ou a falha em qualquer missão, não a meritocracia. Ou seja, não há
motivos ou explicações para nada, existir e as ações decorrentes disso se
limitam a si mesmo. Woody Allen retrata esse amontoado de informações em sua
amorosa e dramática reescrita de Crime e Castigo, onde as tênues linhas entre
vaziamente existir e deixar os outros existirem são rompidas pela desnecessária
metafísica de explicações, moralidades, sentimentos, etc. E, para finalizar, o único
sentido fora os dos campos metafísicos em ver tal filme é a Scarlett Johansson, o que talvez sirva como breve
pista contraditória com o fato da vida não ter sentido. Ou melhor, se for para
atribuir sentidos ao existir e seu fim, que seja o da buceta.