11 de junho de 2012

A quase insensibilidade do Raskólnikov moderno


 
Enquanto o homem acreditou em um sentido para a vida além do simples existir, usando de uma metafísica para reexplicar o que já era óbvio, suas constantes contradições morais o levavam para um rito circular e vicioso de culpa.
Nietzsche, um dos principais assassinos do arcaico Raskólnikov interior dos homens modernos, já argumentava que o mundo em si não possui uma estrutura lógica objetiva, exceto aquela que lhe damos, o que implica no ritual metafísico de explicações desnecessárias. O Raskólnikov de Dostoiévski, subjulgado pela pressão das moralidades, propôs quebrar com as barreiras que o limitavam, ultrapassou o que, no fundo, era inerente a ele e, no fim, caiu em culpa e se resgatou em religião. O processo de culpa que ele sofre deriva da ilusão da moralidade que ele tinha, pautada na metafísica da época, que se esforçou para abandonar em nome do ideal de ser um homem excepcional, mas falhou, pois depois do ato cometido, ele ainda era fiel à busca do abstrato. O Raskólnikov de Dostoiévski falhou, entretanto, o posterior pensamento moderno com base no niilismo apresentado por Nietzsche, dá suporte para que o novo Roskólnikov interior de cada homem possa obter sucesso nas mais variadas empreitadas adquiridas, algo que tem o seu potencial multiplicado dentro do capitalismo atual. Ou seja, a quebra individual dos paradigmas morais de uma sociedade retira os selos da limitação do que deve ou não ser feito em prol da manutenção do simples existir.

Em Match Point, de Woody Allen, vemos que aquele que simplesmente existiu, sem dar ênfase ou se apegar a objetivos traçados é, de fato, um Raskólnikov moderno, melhorado. O seu niilismo moral, que a principio choca, também é confortante sob a ótica de que isso é apenas parte do vazio existencial. Chris Wilton é o homem que se deixa levar pela vida por perceber que a existência não é pautada em um sentido absoluto, mas no acaso. Um homem vazio existencialmente, moldado pela falsa ascensão do capitalismo, que, em dado momento, reduz a zero sua moral para continuar a existir. Assim como o Raskólnikov original, ele sente culpa por seus atos, talvez nos revelando que o desapego moral é impraticável na sua totalidade, mas ele também entende que o processo autodestrutivo da culpa é mera formalidade metafísica, optando por aquilo que é factível, ele decide continuar simplesmente existindo em sua realidade. Vê-lo ter êxito em sua jornada amoral é ter em mãos o retrato de uma sociedade não meritocrática, o que nos revela o quão fraca é a metafísica que nos ilude cotidianamente.

Não existe uma meritocracia, nunca existiu. Não existe de fato um castigo para o crime na versão de Woody Allen, assim como não há na sociedade, não há uma regra fundamental que promova relações justas. A ilusão meritocrática positiva ou negativa é fruto de um processo limitador do capitalismo. Não existe uma certeza em qualquer dedicação, nem necessidade. Plantar nunca implicou em colher e vice versa. E, por fim, não existe um sentimento de impunidade, mas ausência de sentido nas ações, como o próprio niilismo propõe. Reduzir a participação do superego pautado em moralidades inexistentes e carentes de sentido é a meta do homem moderno, de seus Raskólnikovs internos, modernos e vazios, mesmo que isso represente uma geração em massa de sociopatas.

O acaso como forma determinadora de ações também representa a prática natural do niilismo estrutural. Coisas acontecem sem motivo ou explicação, apenas acontecem, acaso. E é justamente o acaso que regula o sucesso ou a falha em qualquer missão, não a meritocracia. Ou seja, não há motivos ou explicações para nada, existir e as ações decorrentes disso se limitam a si mesmo. Woody Allen retrata esse amontoado de informações em sua amorosa e dramática reescrita de Crime e Castigo, onde as tênues linhas entre vaziamente existir e deixar os outros existirem são rompidas pela desnecessária metafísica de explicações, moralidades, sentimentos, etc. E, para finalizar, o único sentido fora os dos campos metafísicos em ver tal filme é a Scarlett Johansson, o que talvez sirva como breve pista contraditória com o fato da vida não ter sentido. Ou melhor, se for para atribuir sentidos ao existir e seu fim, que seja o da buceta.
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