28 de abril de 2015

Tempestade de Epifanias

Cansaço era a palavra do momento. Vinha andando de longe, embora não pudesse mais lembrar da origem de sua viagem. Sua própria origem era misteriosa, no momento. Lembranças misturavam-se com delírios febrios e os objetivos iniciais da viagem se confundiam com desejos não realizados. Era um deus, no entanto, e era recipiente de poderes e potências nos quais baseava sua força.





Na realidade, semi-deus era o termo apropriado para aquela existência. Filho dos poderes místicos da percepção com o mortal tecido da carne. Continha universos em sua mente, mas também era sujeito à vida e morte do corpo, ciclo inescapável de todos aqueles que neste plano habitam. Estava doente, sabia, embora não soubesse como havia contraído o mal que lhe afligia. Isto sim era estranho, pois lembrava-se de ter tomado algum remédio para algo. O quê era? Difícil de pescar as lembranças na lagoa da consciência.

Subia por uma estrada de terra, feita por caminhantes, cortando colinas de vívidas cores verdes que contrastavam com o ousado tom de azul que a abóbada adquirira. Nuvens ao longe tomavam a forma de rostos conhecidos, apenas para que, no momento seguinte, tornassem-se outras familiaridades desconhecidas. Toda essa abundância de cores e aspectos o fazia sentir-se cada vez mais enjoado. Mesmo assim, seguia o caminho, sabendo que, caso parasse, afundaria no poço de agonia e desespero do incômodo que estava à sentir.

Subindo a estrada, mais a frente, pendurada em um galho de uma árvore frutífera qualquer, uma esguia figura esperava o cansado viajante. Tinha a forma de uma ninfa, linda como nos sonhos de um ser apaixonado. Um sorriso suave lhe conferia ares de calma e tranquilidade e seus brilhantes olhos da cor do pôr de mil sóis fitavam o caminhante com a intensidade de estrelas cadentes.

O viajante percebeu-a de longe. Fez da meta momentânea chegar até aquela figura emblemática de sua viagem. Estavam juntos desde que começara o trajeto, mas ela ia e vinha quando queria. Aquele chegou ao encontro mais rapidamente do que havia planejado.

Em tom animado a ninfa iniciou alguma conversa:
"Alto lá, ó Príapã, filho de Ghel, a própria encarnação da mãe terra. Para onde vais em tão desabalado caminhar?"

"Sabes bem de onde e para onde vou.", Respondeu o caminhante. "Começastes o trajeto comigo e zombastes de mim com a mesma pergunta em cada esquina do caminho que venho seguindo. Creio que tens se divertido com suas perguntas e risadas, não? Esperava mais de ti do que o debochar de quem mal pode sustentar-se sozinho!"

A ninfa gargalhou. "Podes apostar que me divirto. E ainda muito mais com este recitar lamurioso de vosso sentimento. Sinto lhe informar mas, para alguém tão poderoso quanto ti, tal auto-piedade soa patética."

A figura feminina desceu de seu galho habilmente e, no segundo seguinte, acariciava o rosto do cansado andarilho.

"Mas não me tomes por inimiga, por favor. Estou aqui por sua causa. Porque não posso permitir que vás sozinho aonde queres chegar, mesmo que eu assim o quisesse. E, por favor, acredites, é de meu total interesse que possa sobreviver à sua peregrinação, tanto em corpo quanto em mente e espírito. Agora de pé! O caminho é longo."

Nem havia se dado conta, já estava embargado novamente em seu lento e obstinado caminhar. A ninfa nunca andava, mas estava sempre ao seu lado, descansando sob cada sombra à beira da estrada, matando a sede em cada fonte e se alimentando de cada fruto que aparecia pelo caminho.

O viajante observou-a de soslaio. Sentiu a necessidade de fazer perguntas das quais acreditava ter, ela, a resposta. "O pior cego é aquele que não quer ver", lembrou-se do dito por uns instantes. Sacudiu-o-o do cérebro e perguntou: "Lembras por acaso de onde venho, então? Para onde vou? Me lembro de estar atrás de um certo jardim, de alguma coisa especial nele. Não sei exatamente onde é, mas tenho a estranha certeza de que encontra-se ao fim do caminho, não importando qual caminho seja este."

"Mmm, está melhor do que imaginávamos, então. Viestes do começo do caminho, embora não saiba eu quando ou porque começastes à trilhá-lo. O fim é este mesmo, um jardim com árvores especiais, onde se pode saborear frutos cujas polpas tem gostos de revoluções, paradigmas e entendimentos. Tu havias dito, outrora, que lá poderias conseguir pistas de como sentir-se melhor."

Estranhamente, para ele, parecia que sabia exatamente a resposta que obteria em uma fração de segundo anterior ao que lhe respondia a ninfa. Seguiu o trajeto até alcançar a base de uma cadeia de montanhas. A trilha se tornaria mais sinuosa dali para frente, mas não havia outro lugar à ir se não em frente. Prosseguiu. O percurso, por vezes, tornava-se íngreme, e o cansado herói exercia tremenda força para transpor os obstáculos. Seu estado de saúde era tão angustiante que não sabia se seu próximo passo seria o último passo de todos ou o primeiro de mais um milhão de passos agonizantes que esperavam no porvir.

Assim, caminhou por semanas em poucos minutos, vivenciando mais viagens dentro desta em que estava do que em todas as outras viagens em que poderia lembrar ter estado. Por fim, chegou à uma área plana, no topo de uma parte daquela cordilheira, em um verdejante plateau recortado por nascentes e espécies vegetais. Sentiu estar perto do que procurava. Neste instante parou à frente de um imenso portal de pedra. Era a entrada das terras altas. Ali, em algum lugar daquela terra, estava o jardim que procurava.

Sentado abaixo deste portal, no meio da trilha, encontrava-se, em posição meditativa de lótus, um ancião de longos cabelos prateados, com simples vestimentas marrons. Seus olhos fechados e posição de relaxamento inspiravam uma nova tranquilidade ao viajante. O ancião abriu seus olhos levemente, observando o semi-deus com um olhar sereno, despido de pena, compaixão ou emoções apaixonadas. O protagonista fitou-lhe nervosamente. Sentia ser aquele o momento de perguntar coisas às quais tinha certeza de receber respostas precisas. Em sua ânsia de questionar, engasgou-se com as palavras que tentavam sair com ansiedade, até cair de joelhos, tossindo, frente ao portal colossal. Olhou com olhos de medo.

Sem abrir a boca ou mexer os lábios, o velho sussurrou em sua alma: "As respostas para todos estes questionamentos já estão respondidas, mas ainda não conseguistes ordená-las em seu "eu". Temo que, até que aches os Jardins da Razão, e, até mesmo depois, ordem será o que lhe faltará. Quando nossos egos não encontram as certezas em que se baseiam ficamos perdidos, inseguros. Desta forma, machucamos corpo, espírito e mente, separando-os, tornando-nos apenas recortes do que realmente somos. Acabamos por achar que somos aquilo que sentimos ou pensamos, esquecendo-nos do peso de nossa história e do tempo empreendido na construção de nossas identidades. Se ainda não podes restruturar-se, terás então de adequar-se ao seu "eu" atual, mesmo que descolado de outras partes de si. Desta maneira, poderás entender à si e à seu redor, senão como o que era antes, então como o que és agora. Neste entendimento, saiba da inevitabilidade de se chocar com o passado qual não podes lembrar-se no momento. Isto poderá lhe trazer dor e tristeza, prazer e alegria. De todas as respostas dos questionamentos que me perguntastes sem proferir sons a mais importante é: "Um passo de cada vez."

Ao fim de sua última palavra, a aparência frágil do ancião pôs-se a desvanecer lentamente, misturando-se à bruma que descia das montanhas. O viajante, ainda estasiado com as revelações do velho, pôde apenas lançar-lhe uma expressão de angústia, ao perceber que logo estaria sozinho novamente.

"Viver... viver... seja uma vida desesperadora ou maravilhosa, é a única opção dos seres vivos... O outro lado é uma certeza, então não te apresses... de encontros e desencontros, ninguém escapa." Proferiu o velho, mentalmente, enquanto o último resquício de sua presença mesclava-se com a neblina.

Esta, um véu branco que encobria todo o plateau, envolveu o viajante, tocando-lhe o rosto como uma carícia fria mas aconchegante. O herói refletiu sobre as coisas que ouvira. Pôs-se mais tranquilo, então. Ainda se sentia mal, mas optou por dar tempo à seu mal-estar, por ser paciente com sua fragilidade, por ser persistente em sua calmaria.

Dormiu um sono de mil e uma noites, atravessando insondáveis perigos e indescritíveis sensações. Manteve, no entanto, sua calmaria interna, como um mar de águas plácidas, banhado pelos primeiros raios de sol da aurora. Consciente de seus sonhos, mas ainda mais consciente de si, agora reduzido apenas ao ser, quase que ignorante ao estar. E, tal como acordasse de um ligeiro cochilar, teve seus olhos abertos por uma suave nostalgia.

Encontrava-se deitado sobre a relva verde, enquanto esta dançava com o balanço das brisas. À sua frente, magníficas árvores o observavam com o peso de séculos de sabedoria por trás de suas peles de madeira. Balançaram-se em um forte vento que pareceu ter sido invocado por elas próprias. Não manifestavam vozes, mas o semi-deus sentia-as urrar, como que felizes por mais um visitante que completara a viagem em que poucos conseguiam suceder. Deste agito, um fruto prateado, brilhante como a lua cheia da colheita, caiu ao chão e rolou, voluntariamente, à mão do viajante. Este, ainda deitado, não hesitou em morder o fruto.

Em um instante seu mundo de cores tornou-se um carrossel à girar rapidamente. E, tal qual como estava, deitado sobre a grama, achou-se deitado sobre os lençóis amarrotados que, julgava, eram os que cobriam sua cama. Sua cama, em seu quarto.

Ainda deitado, fitou o quarto de parede à parede, do teto ao chão, com uma ansiedade infantil. Não podia acreditar, estava em casa! Estava, lentamente, lembrando de aspectos de seus passados recentes! Sentiu uma felicidade estasiante e riu, gargalhou. Quando levantou as mãos para sentir o rosto, no entanto, percebeu que ainda segurava o fruto encontrado no Jardim da Razão. Sentiu sua alma afundar. Percebeu mesmo que ainda não conseguia levantar-se. Olhou pela janela, no outro canto do seu(?) quarto. Lá, cardumes de peixes fluorescentes desbravavam labirintos de corais, em um fundo tão azul quanto o céu, tão azul quanto o fundo do mar. Emitiu um gemido de insatisfação e lançou o olhar ao teto.

Com uma surpresa atrás da outra, encontrou lá, deitada no teto, tal qual estava ele deitado em sua(?) cama, a ninfa, sorrindo-lhe o mais belo sorriso.

"Que maldição é esta? Nunca mais estarei livre para partir? Pertenço eu à alguma realidade ou será minha realidade a infindável transmigração de sonhos? Não consigo lembrar-me por quê isto me acontece, embora saiba que é o que me acontece agora." Exclamou o viajante, vertendo pesadas lágrimas de lamento.

O papel de parede do quarto agora adquirira o aspecto de um universo em movimento, com pulsantes galáxias multicoloridas e rastros escarlate causados por velozes estrelas cadentes. A ninfa ainda era aquela do sonho anterior, mas sua pele compartilhava a cor daquele universo, como se fosse ela translúcida. Seus olhos agora brilharam como sóis e sua voz macia respondeu ao jovem perdido: "Não te esqueças de tudo que aprendestes até agora. Não sei dizer quão verdadeira é tua realidade, eu apenas a habito, não a controlo. Se esta realidade o machuca, no entanto, espero que ela se vá logo, mesmo que signifique que eu também ir-me-ei, pois você certamente existe em algum lugar, tal como eu existo aqui, em você. Eu sinto tua insegurança, sinto tua tristeza. Eu choro por tua dor, me magoo por teu medo."

A ninfa desceu de seu ninho, aproximando-se de seu companheiro de viagens e beijou-lhe levemente os lábios.

"Independente de onde deverias estar agora, no entanto, ambos sabemos que estás aqui. E se ainda tens tantas viagens à fazer, quantas não podemos contar, então te deixo esta mensagem: Tenhas coragem para levantar-te de tuas quedas. Paciência para entendê-las. Persistência para que andes novamente. Guardes aquilo que aprendes como sabedoria, ouça à teus próprios instintos com inteligência. O caminho "foi, é e será" árduo, mas não pares nunca de trilhá-lo. Se acaso morreres antes de chegar à teu destino, saibas que a estrada é o próprio destino. Se acaso viveres para chegar à teu destino, saibas que o destino trarás tua próxima estrada.

"Ainda serás miserável, ainda serás glorioso. Terás o amor e o ódio para escolher, e rogo-lhe que favoreça o amor, pois que embora mais difícil, é este a maior alegria das vidas. Rogo-lhe que entenda seu ódio, quando este vier, e possas ainda assim ser você mesmo, dando espaço para ti para que possa ser um ser vivo e para que possa ser vivo."


"Enquanto estiver por aqui, estarei contigo, e apenas peço para que também estejas contigo. Serei eternamente grata por teres me sonhado."


Que aprendizado doloroso, sentia ele, mas podia entender as palavras que falava à si mesmo por sonho. Respirou fundo... lembrou-se de suas incontáveis viagens passadas... preparou-se para o porvir...

Era apenas mais um dia, sob uma tempestade de epifanias... comments