2 de setembro de 2012

Os Evangelhos Revisitados - Viagens de Um Figura Qualquer




Pelo menos uma vez em nossas vidas surge-nos aquela ânsia de viajar, conhecer o mundo, desvencilhar-se de tudo e todos. E se a maioria não dá fundamentos à este sentimento maluco, pela pouca praticidade e alto risco que possa oferecer, talvez, há aqueles que não pensam duas vezes antes de darem realidade à estes desejos impetuosos. O relato que se segue diz respeito a uma destas viagens, quando um jovem, comum como todos os outros de sua época, decidiu que era a hora certa para merecidas férias.

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Viu-se, então, finalmente livre de toda a papagaiada. Gostava sim de sua galera, eram bem distintos e divertidos, seus colegas, embora alguns não gozassem de senso de humor. Lembrava das gargalhadas causadas por Simão. Desajeitado, bruto e bonachão, o gigante da Cananéia sempre animava as reuniões com aquela amistosa tirada de onda com a cara de seus camaradas. Mangava principalmente de Tomé, que sempre insistia na pormenoridade das coisas. Riu-se, o viajante, ao lembrar de seus amigos. Já estava distante de todos mas todos pareciam perto, cada vez que lembrava das risadas compartilhadas. A viagem, entretanto, fôra tomada no intuito de sumir do mapa. Sentir novos ares, poder curtir a natureza. Também lhe agradava estar longe da muvuca. Matheus, cobrador inveterado, jamais perdia o costume de contar exatamente a cotinha de todos para cada coisinha que costumavam rachar e Judas, com sua mania de roubar bitocas aqui e ali, também era um tormento. Lhe davam nos nervos, de vez em quando.

Agora, longe de tudo e todos, esses pensamentos eram muito voláteis e não mais pensava nos cansaços e desgostos de seu dia-a-dia. Prestou novamente atenção à paisagem. Estava seguindo uma trilha de cabras, enquanto ia andando pela região montanhosa. A vista era de tirar o fôlego. Montanhas tão altas que rasgavam as nuvens, arranhando os céus. A cadeia de montanhas de um lado e longos prados verdes de outro. Caminhava por algumas colinas, no limiar dos dois ambientes. O vento soprou... uma brisa suave que acariciou-lhe a face. Respirou fundo, o ar fresco enxendo-lhe os pulmões. Ah, que maravilha! Gostaria de sentar-se e apreciar a paisagem, mas tinha destino certo e sabia que lá haveria de poder curtir seu roteiro. Ao passar por uma nascente, no entanto, achou por bem fazer uma pequena pausa. Lavou os pés na água fria que formava uma pequena poça e seguia humildemente colina abaixo. O viajante, então, sentou-se em uma pedra próxima, retirou uma garrafa de sua bolsa e verteu generosos goles do líquido que ali jazia. Contra aquela brisa suave mas fria das regiões montanhosas uns bons goles daquele forte vinho eram suficientes para mantê-lo apto à seguir viagem de maneira tranquila e confortável. Malditos romanos, autoritários, briguentos e sem classe. Não conseguia detestá-los, no entanto, se pelo menos seu vinho não fosse tão bom. Tomou mais um gole, agradecendo à Baco por aquela bebida divina. Vestiu suas sandálias e seguiu.

A "quentura" do vinho logo lhe subiu e o andarilho foi acometido por uma súbita e intensa lembrança daquela que deixou em terras distantes. Madá.... Ô, Madá!

Um sorriso de orelha à orelha estampou sua face ao lembrar-se daquela que, por tantas vezes, o aqueceu nas noites frias. Madalena, jovem e bela. Às vezes ficava muito doente, mas já lhes diziam a sogra do viajante: "Este rapaz faz maravilhas para sua saúde, Madá, minha filha!". Lembrou-se então, o viajante, de seu primeiro encontro com sua amada Madá. Estava grogue, já, após ter vertido muitas taças daquele velho vinho romano com seu colega Pedro, que negava veementemente estar bêbado. Acabaram a noite na cidade baixa, na companhia de duas trabalhadoras da vida. Lá, aquecido pelo amor da jovem Madá, nosso aventureiro conheceu o amor. Aquela moça cheia de graça e charme, lutando para levar alimento e abrigo para sua casa, roubou-lhe o coração. O caminhante sorria para si, reconhecia a reciprocidade de seu amor e jurava que logo tiraria sua querida Madá daquela profissão.

Estava tão absorto nestes saborosos pensamentos quando sua barriga avisou-lhe da fome. Ainda em seu caminho, retirou um embrulho de sua bolsa. Dentro, um sanduíche de atum preparado especialmente para a viajem. Riu-se, o viajante, enquanto saboreava sua larica e lembrava do dia em que surprendeu à todos com sua habilidade de quebrar galhos. Todos, o viajante e seus amigos, voltavam de uma festa frenética que perdurava por dois dias e duas noites. Exaustos, procuravam apenas saciar aquela fome e sede abismais. Parados, numa praça de certa vila, lamentavam-se do fato de não haver comida nenhuma. Entretanto, o viajante, que conhecia o padeiro e o peixeiro da vila, logo arranjou um esquema para saciar a fome de sua galera. Em troca de um lote de vinho, receita secreta que usava para fazer a bebida de maneira fácil e instantânea (e duvidosa, por sinal), o padeiro arranjaria pão para todos. De maneira similar, assim faria o peixeiro. Ao arrumar sanduíche de sardinha pra galera toda, que já estava debulhada, foi muito congratulado. Por muito tempo o chamaram de "mago multiplicador", devido aos truques doidos que realizava.

De fato, já havia vivido tanta coisa. Lembrava ainda to tempo que trabalhava como marceneiro com seu coroa, Zé. Meio bronco e antiquado, um tanto caretão, mas ainda assim uma alma boa. Tinha saudades dele e da família. Ah sim, tinha saudades de sua velha. Maria, sua mãe, sim, mulher inteligente e ligeira. Não dormia no ponto e sempre tinha ótimos conselhos. O andarilho nunca entendeu o que sua mãe havia visto em seu pai, mas também nunca se intrometeu no assunto. Ah, sentia saudades dos papos com a coroa, varavam a noite trocando ideia. Ainda lembrava da voz dela como se estivesse ali falando com ele, como naquele dia que, já esperta com o movimento, alertou: "Não têm mais vinho..." (João 2:3).

No entanto, era bom também estar fora de casa, já estava com algumas tretas pelo bairro e a situação estava meio tensa. Tinha feito barraco no mercado algum tempo atrás, havia até derrubado alguns estandes. Também havia arrumado confusão com uma valentão do bairro, Barnabás. Por injustiça o povo da região ainda ficou do lado de Barnabás e açoitou com a língua o pobre viajante.

Lembrando-se que isto tudo estava para trás, voltou sua atenção ao ambiente. Estava chegando à seu destino, podia prever, estava andando por uma trilha que subia havia tempo. Enfim, viu-se perto do objetivo. Um mirante, simples mas suficiente para oferecer abrigo com uma vista magnífica. Havia chegado e, pelo visto, estava só no local. Que vista de tirar o fôlego, à cadeia de montanhas margeando o horizonte, campos de grama embaixo, movidos pelo vento alterando sua cor verde com o branco do reflexo do sol. Não teve dúvidas, sacou seu cachimbo especial (presente de seu pai, um homem careta mas carente de visão das coisas) e tratou logo de tacar fogo em um matinho que nele se encontrava. Como ateou fogo? Bem, como já dito, tinha seus truques. Brincava com a fumaça que escapava lentamente e seguia o caminho do vento. Que viagem irada. Estava envolvido na boa vibração quando algo surgiu logo à sua frente.

Uma criatura com aspecto horrendo apareceu. Dizia um troca línguas embaralhado e confuso: "fazdapedrapão-fazdapedrapão-fazdapedrapão". O andarilho viu a situação com um certo desconforto e, por um breve momento, sentiu-se ameaçado. Mas isso foi só até notar que estava doidão. O fumo que arranjara era daqueles que mataram o guarda. O viajante gargalhou. Eram tantas histórias nessa vida. Ficava lá, imaginando o que pensariam dele no futuro. Já puxou da bolsa um papel e lápis e danou-se à escrever os poemas despretensiosos que gostava de fazer. Ainda na lombra do ser que falava em pedras, já mandou um versinho:

"Use a erva, é a regra,
Não use a primeira pedra"

Notadamente, não faria muito sucesso como poeta, mas divertia-se com sua arte besta. E ficou lá ainda um tempo, curtindo as boas vibrações que o mundo tem à oferecer. comments